domingo, junho 29, 2008

Too late


Maria pressente um crepitar, acompanhado de um bafo quente, escassos milissegundos antes de ouvir uma voz grave e arranhada, junto da sua cama:

- Levanta-te... Já é tarde.

De rompante, Maria salta da cama, com o coração a pontapear as costelas.

Já era tarde para tomar banho, tarde para apanhar o comboio, tarde para poder comer algo.

Ainda assim, Maria esvoaça pelos corredores da casa, tentando calçar as sandálias aos pulinhos. Pega numa maçã que rapidamente coloca na mala, enquanto lava os dentes de nariz empinado, para não sujar a roupa com pasta dos dentes.

Chama o elevador enquanto escova o cabelo e sai de casa insuflada de stress.

Esquece-se das chaves do carro e, furiosa, volta a subir procurando-as sofregamente por todos os sulcos do sofá e por baixo das almofadas.

Quando finalmente as encontra, já era quase tarde demais para ir de carro.

Maria atira-se para dentro do carro que rapidamente põe a trabalhar. Mergulhado numa nuvem de fumo e envolto numa chiadeira infernal, o Fiat Uno esgravata a gravilha das obras do 3º Esquerdo e sai disparado, como uma flecha, daquela sossegada praceta.

Mentalmente Maria tenta engendrar a forma de chegar o mais cedo possível. Já era tarde para ir pelo caminho normal, e vai pela auto-estrada.

A estrada está amanteigada, resultado das chuvas nocturnas. Cedo se apercebe do resultado do terreno escorregadio, ao ver ao longe diversos piscas amarelos e laranja, e luzes azuis intermitentes.

Um acidente...

Maria deixa de piscar os olhos por breves segundos. Não queria crer... já era tão tarde...!

Suspira enquanto desejava ter uma mota, até que num acto de loucura, coloca os quatro piscas e enfia-se na berma da auto-estrada e começa a andar prego a fundo.

Cedo foi mandada parar pela polícia, que mais à frente tomava conta do acidente.

Abordada pelo agente, Maria apenas disse:

“É demasiado tarde...”

Após submetida a diversos testes e ao pagamento de choruda multa, Maria olha o relógio. Os olhos inundam-se.

Já era tarde demais... tarde, demais.

segunda-feira, junho 09, 2008

Quo Vadis


Fios, suor, trabalho.

Teço uma corda que me leve carinhosamente até ao fundo. Fundo que irremediavelmente terei de tocar nesta fase descendente. Fundo preenchido de afiadas estalagmites de gelo firme, do qual vou novamente saltar e me impulsionar para subir os escarpados montes do sucesso.

Corda que me vai impedir de cair e depois me irá guiar pelo caminho ascendente...

Começo a viagem.

Olho em volta do enorme negro abismo. Está preenchido por uma neblina que o torna aparentemente sem fim.

Uma rajada de vento, faz-me dar um passo em frente em direcção ao precipício.

Seguro-me, não caio.

Desenrolo a corda e procuro alguma árvore suficientemente forte que me dê confiança em lhe dar a minha vida.

Não encontro.

São árvores frágeis, mortas e secas, ou distantes, tão distantes que a minha corda não chega...

Procuro em volta uma solução, busco dentro da mala e encontro um pesado prego, que com a ajuda de uma grande pedra, consigo que ele corte o chão árido.

Ato, com segurança, a corda ao prego e testo-a. Aparentemente está firme.

Brevemente os meus olhos perdem o brilho. Irrompem-me pensamentos de desejo de uns braços fortes, que pudessem fazer-me sair daquele buraco negro.

Desperto.

Enrolo a corda à minha volta, aperto-a com várias voltas, e desenrolo o resto. Olho-a com o respeito apavorado de quem não quer cair, de quem não quer andar à deriva.

De costas para o abismo, pés firmemente cravados na sua berma e corda bem esticada, olho para as árvores que imóveis, nada dizem.

Desço,

Ainda assim, antes de desaparecer por entre rochas e raízes defuntas, digo baixinho:

- Até ...